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Por Flávio Siqueira

Minha primeira rádio era da Renascer.

Em 1991 não existia “carnê Gideão”, “apóstolo” ou “bispa”.

Não tinha “ano apostólico”, nem “espada” por nada.

Naquela época, eram alguns jovens cabeludos e tatuados que, com suas guitarras e baterias, faziam um som diferente e contestador : “Ser humano, deixa de ser sepulcro caiado” , “Ninguém pode comer vinte pratos por dia, ninguém pode dormir em vinte camas numa noite, tanta gente passando fome e a justiça pede sua cabeça”, “Aonde está a honra dos orgulhosos ? A sabedoria mora com gente humilde, liberdade…”

A Imprensa Gospel veio com esse espírito. Foi uma revolução.

Apesar de sua programação não preencher toda a grade da rádio Imprensa em São Paulo, aquelas doze ou dezesseis horas iniciais eram suficientes para arregimentar um enorme contingente de ouvintes e voluntários.

Aos dezesseis anos eu era um deles.

Procurei o Estevam e a Sonia com a expectativa de um adolescente que sonha em mudar o mundo.

Não tinha experiência, nunca tinha trabalhado, de modo que só me restava o voluntariado.

Durante três anos, convivi com muita gente, e aprendi muito.

Gostava de transmitir as “reuniões de segunda feira” , onde a Renascer da Lins de Vasconcelos virava literalmente uma casa de shows.

Era engraçado ver jovens metaleiros dividindo espaço com punks e “bleianas” de “saião e cabelão”.

Todos se sentavam no chão, as luzes eram apagadas e as bandas tocavam debaixo de refletores coloridos. No fim, um sujeito barrigudo, de tênis e camiseta ,subia ao palco e falava coisas do tipo ” você acha que uma picada te faz viajar ? experimente ficar sóbrio e começar a se cuidar. Existem viagens muito melhores”

Todos aplaudiam e muitos se sensibilizavam.

Mas com o tempo, o sujeito barrigudo trocou o tênis pelo sapato caro, as camisetas por ternos bem cortados, os jovens que o acompanhavam, por seguranças armados, sua santana quantum velha por uma BMW ganha de modo esquisito, seu velho sobrado no Cambuci por uma casa bem melhor.

Seu discurso foi mudando, suas preocupações pareciam diferentes, as “reuniões de segunda feira”, viraram “reunião de empresários”.

A atmosfera de alegria e libedade cedeu lugar a tensão.

Entre os jovens, uns resolveram ir embora, outros viraram “bispos”, deputados…

Em 1993, entre os dezoito e dezenove anos, achei melhor seguir em outra direção.

Minha saída foi dificil, recebi muitas críticas, mas sempre estive certo que aquele caminho não era o meu.

De longe acompanhei com tristeza todas as mundanças.

Vi o jovem que falava sobre as “picadas” sendo preso com diheiro ilegal, sua esposa cabeludona e sorridente virando socialite e depois indo para cadeia, ouvi histórias tristes, soube de muita coisa.

Ontem, ao ligar a TV, vi aquilo tudo desabar.

A sede das reuniões dos jovens cabeludos virou “sede mundial” e a sede mundial desabou, matando nove pessoas e ferindo outras tanto.

Muito triste ver famílias debaixo de escombros e o desespero de familiares e amigos do lado de fora sem saber onde estavam os seus.

O que era para ser bom, virou tragédia.

Fico pensando nos que estavam lá e viram o teto cair sobre suas cabeças sem saber o que estava acontecendo.

Ninguém sabe o que houve e as responsabilidades serão apuradas.

Ainda que por meio segundo, cogitei se esse desastre poderia desimpedir os olhos.

Que a tragédia encontrasse significado em um repensar de caminhos e fizesse com que as coisas fossem diferentes.

Mas durou pouco.

Lembrei que alí já houve outras tragédias - menores, reconheço- mas que só fizeram com que os seguidores falassem em espada e os lideres virassem martires

Como tudo, tenho medo que a dor e o luto vire moeda e sejam capitalizados.

“Carnê da reconstrução”, depois de mais uma “perseguição” do “inimigo”.

Multidões de mãos dadas, não para prestarem solidariedade as famílias enlutadas e partidas ao meio, mas para “contribuirem” cada vez mais.

Costumo dizer que podemos dar significado as tragédias e, por mais doloridas que sejam, delas tirar lições.

Tenho minhas duvidas se será o caso.

Resta aqui meu profundo lamento, esperando que as famílias sejam amparadas e que os internados fiquem bem.

Daqui a pouco tudo passará, as pessoas esquecerão os que se foram e o discurso triunfalista dominará.

Que a gente possa olhar para essa história com o sentimento de que não temos o controle sobre nada e , ainda que possamos nos esconder atrás de impérios, em uma hora eles podem desabar.

Hoje estamos aqui, amanhã quem saberá ?

Enquanto isso, que possamos andar com a paz de quem faz seu caminho consciente, sabendo que, mais do que tudo, vale aquilo que somos.

Nunca mais tive contato com o jovem barrigudo e sua esposa cabeluda.

Ainda que as vezes os veja em páginas de jornais, não são mais os mesmos.

Sinto pena do que viraram e torço para que se reencontrem.

Tragédia é sempre dificil e inexplicável. Que as familias possam se refazer e os feridos se curarem.

Era uma vez um lugar onde jovens se reuniam para contestar, e ouvir boas palavras, onde os metaleiros e as meninas de saião e cabelão se igualavam e a atmosfera era de alegria.

Ontem tudo desabou… na verdade, desabou há muito tempo.

Fonte: Blog do Flávio Siqueira

Por Amenidades da Cristandade

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